sábado, 13 de novembro de 2010

Cazuza

  • Eu conversava com Paulo César quando alguém me perguntou se eu queria me despedir de meu filho. Entrei no quarto, o abracei e lhe pedi perdão por tudo o que eu fiz de errado, por toda a incompreensão, pela impaciência, por amar demais, por ter demorado a entendê-lo. Em voz alta, como se assim ele pudesse me escutar melhor. Três anos depois, conversando com uma amiga, a escritora Glória Perez, ela me verbalizou a mesma sensação que senti naquele momento ao abraçar meu filho morto. Contou que, ao abraçar sua filha Daniella Perez, assassinada em 28 de dezembro de 1992, sentiu como se a estivesse levando de volta a seu útero. Eu abracei Cazuza como se quisesse que ele entrasse dentro de mim novamente.

  • A pior constatação de minha vida foi descobrir que meu filho viveria apesar de mim. Era tamanha a responsabilidade que sentia em relação a ele que de repente, quando ele se transformou numa pessoa pensante – e, de modo geral, com uma cabeça muito diferente da minha –, me percebi totalmente impotente. Os conflitos em casa começaram a se intensificar a partir dos 12 anos de Cazuza. Meu descontrole data do início da era da mentira.
  • Quando meu filho completou 20 anos, foi como se um raio de lucidez se apoderasse de mim. Como, se cansada de tanta luta em vão, me encontrasse finalmente, com as portas da compreensão abertas à minha frente. Até então eu havia tentado, de todas as maneiras possíveis e impossíveis, transformar Cazuza no modelo de ser humano que eu acreditava ser o mais certo, o mais adequado. Fiquei convencida de que não era necessário dominar ninguém para ser feliz. Minha tentativa de dominar meu marido havia revertido de tal maneira que seria correto dizer que era ele quem me dominava. Também tentei dominar meu filho e não consegui. Havia chegado o momento de relaxar, de aceitar o fluxo da vida tal qual ela me fulminava no rosto a cada manhã.

  • Não sei se pela consciência da solidão, ou pela dor de poeta que carregava em seu peito, a verdade é que meu filho nunca desejou servir de exemplo para ninguém. Tinha verdadeiro pavor em ser reconhecido como “guru” e, também, de aglutinar seguidores quando se discutia seu modo de vida. Em entrevistas declarou, várias vezes, que não aconselhava ninguém a segui-lo, nem mesmo um cachorro de rua.

  • Como descrever aquele sentimento que nos envolveu os três, pai, mãe e filho, na mais triste volta de Cazuza para nossa casa? Como se consola um filho que acaba de descobrir ser portador de uma doença fatal? Em que forças devemos nos agarrar em situações de extrema carga emocional como aquela, quando olhei nos olhos de Cazuza e desejei trocar minha vida pela dele?


  • O desabafo de Cazuza com o analista, no último contato entre eles, pode parecer dramático, mas nem mesmo nos dias do pior pesadelo deixei que o clima de piedade contaminasse os últimos momentos da vida de meu filho. Mantive a promessa de nunca chorar na sua frente e essa atitude se reverteu em sentimentos mastigados e não digeridos. Meu sorriso, mesmo assim, esteve sempre nos lábios em todas as últimas vezes em que nossos olhares se cruzaram.

  • Quanto a Cazuza, descubro a cada dia como suas atitudes ousadas e seus versos de belezas desconcertantes carregavam em si o sentido da eternidade. Meu filho acreditou que o destino imutável dos poetas fosse abrir-se ao mundo e rasgar-se todo, até que nenhuma partícula lhe sobrasse desconhecida por dentro. Viveu intensamente todas as chances de experimentar novas sensações que a vida lhe proporcionou. Sem medos e sem freios. Exibiu-se no palco e fora dele com a sensualidade das pessoas intuitivas, não reprimidas.

  • E, assim, penso que o amor das mães não faz mal a ninguém. Basta entender e aceitar esse vínculo carnal que se inicia quando a vida floresce dentro de nossas entranhas. É um longo e doloroso aprendizado, concordo. Para mim, a chance de tentar novamente passou. Quem sabe posso ajudar alguém a compreender?

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